O Ovo que me fez mentir.
Marcos Cordeiro de
Andrade
Uma pequena
mentira oficializada no início da vida pode marcar uma pessoa para sempre. É
quando a partir daí ela faz da Verdade o pilar de sustentação do seu caráter.
Nos idos da década de 1960, dois anos depois de participar da MOVEC na
jurisdição em que atuava como Investigador de Cadastro, recebi nova missão a
ela atrelada, agora como Fiscal da CREAI. Tinha a espinhosa tarefa de cobrar
empréstimos não honrados pelos tomadores. Era dinheiro do Banco do Brasil usado
para aquisição de bens de consumo, semoventes e implementos agrícolas.
Embrenhado nos rincões do interior paraibano, perguntando
daqui e dali conseguia fazer contatos e cobranças não muito proveitosas,
encaminhando os devedores à Agência do Banco.
Numa jornada “coroada de êxito” localizei um alquebrado
agricultor, na faixa dos setenta anos mal vividos, responsável pela compra de
pequenos animais de criação. Na isolada casinha de taipa de um só cômodo, duas
redes armadas num dos cantos, no outro, separado por uma sebenta colcha de
retalhos desbotados e esticada perto do teto de telhas de barro, ficava a
trempe que servia de fogão à lenha. Dois penicos numa das quinas da casa faziam
as vezes de privada noturna para o casal de idosos que, sozinhos, habitavam o
pequenino rancho. Pela passagem dos fundos, sem porta, via-se a milagrosa prole
do sustento diário, originária da dívida que me cabia recuperar. Presos num
arremedo de malcuidado cercado de galhos secos, num canto dos fundos uma cabra
magricela remoía para fazer render o pouco de palma ingerida como ração diária.
Ao seu lado, amarrada por um dos pés numa embira de agave torcido, beliscava o
chão poeirento uma galinha caipira que mal tinha forças para cantar em resposta
ao galo velho que em breve iria para a panela, pois eram difíceis aqueles
tempos em questão de alimentação. Tudo isso era a fortuna dos velhinhos
mutuários da MOVEC. O resto da criação foi comido aos poucos, depois que o neto
que lhes fazia companhia rumou para as bandas de São Paulo, não sem antes fazer
o dinheiro da passagem com o que tirou do quintal para vender.
Cumprida minha missão de especular a vida dos “devedores”,
juntei minhas lágrimas às do dono da dívida quando, indo ele até a lata de
farinha de lá retirou um ovo e, com as mãos em concha, me fez a oferta.
- O senhor aprecia um ovinho? É tudo que posso dispor.
Foi esse o dia em que menti para o Banco. E pela primeira e
única vez na vida assinei um laudo falso onde dizia: mutuário desconhecido na
região.
Marcos Cordeiro de Andrade
- 79 anos -
Aposentado do Banco do Brasil
cordeiro@marcoscordeiro.com.br
2 comentários:
Antonio Marcos Barbosa Bezerra comentou sua publicação.
Antonio Marcos Barbosa Bezerra
11 de setembro às 11:03
FIQUEI IMAGINANDO AS CENAS QUE DESCREVESTE. Vi , como se estivesse lá. item por item. (Também trabalhei elo interior paraibano) só que no sertão, Pombal, Sousa, . No Maranho - Santa Inês. No brejo paraibano - Jacarau, Mari, Rio tinto, Mamanguape, dentre outras. ERA MESMO ASSIM A POBREZA, A casa de taipa, como descreveste e até penico, que, ela manhã, jogavam o conteúdo fora ( e nem lavavam). Sempre digo : Como o nosso Banco mudou. !!!!!!!. Pra pior.
Estimado Presidente Marcos Cordeiro,
Acabo de ler a sua mensagem que envolve o casal de agricultores humildes e que pouco restava, até para comer, quando de sua missão no BB como fiscal da Creai, a qual me fez derramar algumas lágrimas. Lembrei-me de um fato ocorrido na Agência do BB na cidade de Penedo(AL), onde tomei posse e laborei por 16 anos e meio. Ocupava a função de Auxiliar de Supervisão, lotado no SETOP. Havia uma cliente viúva e já idosa que fazia empréstimo na Creai (antes de se tornar SETOP). Residia numa localidade rural no vizinho Estado de Sergipe, o empréstimo era feito com "Carta de Anuência" assinada pelo proprietário da terra, porquanto ela não tinha terra. Um dos financiamentos não foi pago e ela desapareceu. Os fiscais encarregados das vistorias sempre informavam a Agência que não havia condições de recuperação, vez que a devedora nada possuía, terminando a dívida sendo compensada como "Prejuízo" em um dos balanços. Passados alguns anos a velhinha apareceu na Agência e me procurou, dizendo que queria saber quanto era a sua dívida. Eu olhando para ela vi aquele rosto magro, sofrido, cabelos brancos e perguntei se ela ainda desejava fazer algum negócio no Banco, recebendo a afirmativa de que não queria mais fazer empréstimo. Tomei a decisão, até correndo um risco, e disse para ela que fosse para casa que o Banco já tinha perdoado a sua dívida. Desse dia em diante não tive mais contato com a mesma até me transferir para a Agência Farol -Maceió(AL), onde me aposentei depois de 13 anos e oito meses de trabalho.Um abração do Barros-Maceió(AL).
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