PARAIBA - SER OU NÃO SER?
Marcos Cordeiro de
Andrade
É no mínimo paradoxal o resultado
da presença nordestina no mercado de trabalho do eixo Rio - São Paulo. Se de um
lado engrossa o contingente de mão de obra barata, de outro contribui
proporcionalmente para a sangria da capacidade produtiva no interior do
Nordeste, ao tempo em que marginaliza socialmente enorme parcela de brasileiros
carentes. Ainda mais porque o êxodo rural já não se dá nos moldes do primarismo
dos paus-de-arara de outrora, e é cada vez maior a enganosa atração que o Sul
Maravilha exerce além-fronteiras.
De certa forma a rotina estabelecida
pelos que aqui já estão - com a remessa sistemática de dinheiro para os seus -
induz os que lá ficaram a visualizar a materialização da busca do Eldorado,
mantendo-os afastados da realidade reinante uma vez que as quantias enviadas,
quase sempre, são tudo que sobra pela paga do trabalho executado depois de
extraído o mínimo necessário à subsistência individual. Ademais, a ignorância e
o conformismo impedem um esclarecimento convincente por parte dos daqui para os
de lá. Conhecessem aqueles as agruras dos que aqui purgam seus pecados por
certo seriam desestimulados a abandonar seus territórios. Por isso, e no combate
a essa ilusão, faz-se necessário a adoção de medidas esclarecedoras acerca do
que os aguarda ao partir em busca de melhores dias. Até porque, ao ignorar a
lenta e progressiva agonia que os acompanha no engodo da aventura, para cada um
deles o sonho começa a se transformar em pesadelo ainda no nascedouro – em sua
cidade, na sua casa, no seu terreiro. Portanto, o início de tudo se dá ao optar
pela viagem, quando resolve amealhar recursos para a aquisição da passagem de
ida e sacrifica os parcos bens existentes. Daí vende a terra – quando a tem –
ou as criações; deixando um pouco mais de pobreza a ser partilhada entre os
familiares, consolados na esperança de vê-lo bem sucedido na empreitada e com o
triunfo abrandar o peso do fardo deixado para trás.
Esse migrante para cá se desloca
despreparado, com pouca ou nenhuma escolaridade, chegando sem qualificação
alguma, de vez que no asfalto não há terra para cultivar nem bichos para cuidar
– suas únicas “especialidades”.
E ao desembarcar, sem destino
pré-determinado, ficam à mercê da orientação do momento, aí começando a
peregrinação aos canteiros de obras, balcões de empregos, albergues e fundações
beneficentes. Em condições de penúria e quase desespero que o fazem aceitar o
que lhe cai às mãos a título de emprego. Isto porque o nordestino recém-chegado
em tais condições, quando tem a sorte de conseguir colocação, nunca se encaixa
no primeiro escalão da massa operária. Para ele é reservado o patamar inferior,
com o pomposo rótulo de AJUDANTE (de pedreiro, eletricista, carpinteiro, mecânico,
cozinheiro). Porém, qualquer que seja a atividade que abrace, e pela condição
de não qualificado, o que conta é a sujeição e disposição ao trabalho; o que
ele faz é pegar no pesado, a parte braçal, o lado sujo da coisa. Daí se propõe
a exercer todo tipo de ofício e até se submete a artifícios humilhantes para
ganhar alguns trocados, seja nas feiras livres ou praças públicas. Houve época,
até, em que se investia na posição de engolidor de fogo e comedor de giletes e
cacos de vidro para sensibilizar a “platéia”. Isto quando não arrebentava
pedras à marretadas no peito magro e, às vezes, o próprio peito. E é com o
fruto dessas ocupações que garante o sustento diário e opera milagres para que
sobre o que mandar para a família - juntando às remessas cartinhas mentirosas de
prenúncio da fartura que nunca virá. Cartas muitas vezes escritas a rogo, por
um companheiro de trabalho ou parceiro de alojamento.
Seu ingresso no mercado de
trabalho tanto pode acontecer na cidade e periferia como no campo e áreas
nobres de lazer. E o primeiro emprego surge, geralmente, na construção civil.
Mas, dependendo da sorte do momento as opções ainda oscilam entre os canteiros
de obras e bares, lanchonetes, restaurantes, quitandas, padarias, oficinas
mecânicas. Na função de ajudante, sempre. Poderá, ainda, ser aproveitado em
casas de veraneio como doméstico, caseiro ou vigia.
É sabido que os tipos de moradias
disponíveis não são muito lisonjeiros. Profissões há que fornecem alojamento,
mas em condições de péssima qualidade, como nos canteiros de obras onde se
instala em galpões que lembram aglomerados carcerários com seus odores, vícios
e promiscuidade. Até que nos edifícios existem espaços próprios para abrigar
seu pessoal, mas nem aí é bem servido. Os porteiros, melhor aquinhoados, ocupam
arranjos edificados na laje superior dos prédios, ao lado da casa de máquinas
dos elevadores ou sob a caixa-d’água. Para zeladores e garagistas são
reservados cubículos ao rés-do-chão ou no subsolo, junto às cisternas e suas
bombas, ou na garagem convivendo com automóveis e seus gases tóxicos. No campo,
na praia e nas serras contam com relativo conforto em “casas de caseiro”, que
não passam de pequenas construções nos fundos da propriedade (ao lado de
galinheiros e canis) e mobiliadas com expurgos da casa principal. Para os que
não moram no emprego resta como alternativa habitar favelas e
cidades-dormitórios. Comprovadamente núcleos residenciais de maior índice de
criminalidade do país.
As perspectivas de constituir
família são mínimas sob o enfoque dos padrões aceitáveis. Se não bastassem as
dificuldades de habitação e trabalho condigno para manutenção de um lar, há o
detalhe de que quase sempre os solteiros deixam na origem uma noiva ou
pretendente, alimentando a expectativa de retorno abastado. Conquanto guardem
fidelidade ao compromisso assumido, este se esvai com o decorrer do tempo
tornando-os celibatários pela impossibilidade da volta. Quanto aos que contam
com um teto e emprego estável, como no caso do pessoal de portaria, seu quarto
mal dá para abrigar uma pessoa e na maioria deles não se permite acompanhante,
exceção feita ao porteiro, tido como um privilegiado no seio da Classe. Mas
cujo posto somente é alcançado à custa de anos e anos de trabalho nos escalões
inferiores. Por outro lado, e muito embora se suponha o contrário, no campo e
nas praias a situação se assemelha. Para as colocações nessa área são comuns os
anúncios classificados com oferta de emprego a “casal sem filhos”. Essa
exigência propicia mais comodidade e economia aos patrões, visto que o homem
cuida da parte externa da vivenda e a mulher se encarrega da parte interna, sem
o inconveniente de “desperdiçar” tempo cuidando de filhos e arcando, ambos, com
um sem-número de atribuições. Ali cabem ao varão as múltiplas tarefas de
zelador, jardineiro, horticultor, agricultor, garagista, tratador de cães, da
piscina – enfim, um “pau-para-toda-obra”. Já à mulher compete ser cozinheira,
copeira, arrumadeira, lavadeira, passadeira, babá. E tudo pela paga de um salário-mínimo
ao mês, com direito às sobras dos rega-bofes dos patrões nos fins de semana
(com raras exceções, é claro).
Também o lado emocional se
ressente com as dificuldades de adaptação aos costumes, talvez até em maior
grau que do ponto de vista material.
Por mais que perdure sua permanência
na metrópole nunca chega à plenitude da aceitação. Não assimila as mudanças
regionais impostas aos hábitos, visto que é renitente à adoção da linguagem
corrente e não abre mão de seu sotaque, sua fala mansa, arrastada, suas
definições e termos próprios. Para ele macaxeira nunca será aipim, nem jerimum
jamais será abóbora. Complementando o quadro, junte-se a saudade e a incerteza
do futuro e estará consolidada sua angústia. Sobrando a vontade da volta que se
une à obstinação em vencer. Fazendo com que o repúdio ao fracasso o condene a
não mais voltar.
Na esfera do lazer não se permite
muitos luxos. Quando muito se aventura em algumas escapadas, como aos campos de
futebol onde forma na ala dos “geraldinos”. No mais não dispensa os
regionalismos, preservando-os no convívio com os conterrâneos.
Em grupos eles primam pela
manutenção da culinária e folclore nordestinos, se reunindo em feiras livres
para saborear os pratos típicos, ou nas praças e forrós para admirar
sanfoneiros, violeiros e repentistas. Em tudo fazendo do passado uma presença,
pelo desejo da volta, um dia. Mas dificilmente retornam visto que, como algumas
aves de arribação, eles sucumbem no vôo de ida; aqui tragados pelo despreparo
profissional, escravizados pelo salário diminuto e pela impossibilidade de
amealhar recursos para o retorno digno no cumprimento das promessas feitas –
aos seus e a si próprios. A não poder partir com a fortuna sonhada preferem
continuar apegados aos ganhos irrisórios, transformados em ordens de pagamento
e vales postais, quase que integralmente, entra mês e sai mês. E assim vão
mantendo a falsa imagem de trabalhadores bem -ucedidos no Sul Maravilha,
ensejando que outros incautos venham no seu rastro.
Por tudo isto, urge que medidas
preventivas sejam adotadas visando pôr termo a esse assédio ao sul por parte
dos pobres nordestinos.
Todavia, mandá-los de volta
simplesmente como querem alguns seria feri-los na pureza do seu orgulho. Já que
na sua ingenuidade se arvoram de guerreiros voluntários empreendendo jornada heróica
que só admite a vitória; e cuja retirada somente é concebível com a recompensa
pela luta travada.
Afinal, é com essa ilusão que por
aqui vão ficando sem ambição maior que angariar o sustento diário na esperança
do porvir melhor. Ademais, há que se respeitar o caráter dessa gente. Sua
determinação e capacidade têm sido de primordial importância para o
engrandecimento da nação, sendo histórica sua tradição em emprestar forças à
construção da casa alheia, no mutirão sem retorno. Foi assim que procederam no
Acre e em Brasília desde seu primeiro marco. Assim também foi em São Paulo e no Rio de
Janeiro, embora em circunstâncias diversas. Quer seja na construção, seja no
povoamento, é patente o sacrifício desses filhos do Nordeste que não tornam a
casa. E ao ficar alhures se transformam em colonos, candangos ou favelados –
marginalizados todos. Povoando as agrovilas, cidades-satélites,
cidades-dormitórios ou simplesmente favelas. Vivendo num submundo não sonhado.
Nem merecido, tampouco.
Os que deste modo se submetem ao
trabalho semiescravo e condições de vida subumanas, melhor serviço prestaria ao
país e a si mesmos se permanecessem em suas origens. Mas isto em condições
dignas de educação, moradia e oportunidades.
E para compor esse quadro de
melhoras é necessária uma conscientização conjunta de respeito e ajuda.
Poder-se-ia começar pelos órgãos assistenciais subordinados às Prefeituras
nordestinas, que se encarregariam de esclarecer sua gente através de campanhas
elucidativas, com palestras lastreadas por vídeos contendo amostragem da
realidade para, assim, desmistificar o conceito errôneo de Sul Maravilha. Mostrando
o dia-a-dia dos concidadãos sofredores para desencorajar os desavisados. Com o
intuito de desmascarar o Cinema e a Televisão com a eliminação de utopias
existentes. Isto porque, nesses veículos é estampada a vivência do sul para o
sul; do seu povo, dos seus costumes, com comodidades inacessíveis aos
subempregados. O que cria no nordestino carente a falsa idéia de que tudo por
aqui é mais fácil e o bem-bom fica ao alcance de quem se proponha a pegá-lo,
sem maiores sacrifícios. Essa mesma TV deveria promover debates e entrevistas
com esses empedernidos obreiros do sofrimento, levando seus percalços a todos
os rincões e expondo seu “modus vivendi”. Mostrando tudo, mesmo. O tipo de
trabalho que lhes é destinado e os riscos de acidentes a que se expõem; as
precárias condições de habitação e dificuldades de lazer; as filas do INSS; a
sobrecarga nos serviços de infraestrutura que ocasionam com conseqüente
reversão no aumento da miséria, pobreza e criminalidade – que os atingem
diretamente; a proliferação das favelas; o horror que representa a
marginalidade dos meninos de rua, pivetes, delinqüentes; a discriminação para
com suas mulheres que têm de se sujeitar ao trabalho de domésticas e faxineiras
diaristas, sem amparo dos direitos trabalhistas básicos; o destino dos menos
afortunados que envelhecem como zeladores e vigias noturnos – ou são recolhidos
aos asilos de mendicidade, ou, ainda, daqueles que sucumbem nas sarjetas como
alcoólatras e viciados outros. Mostrar o que significa abdicar da dignidade, de
sua própria identidade; o que é viver sempre ocupando as sobras dos empregos,
das habitações, das escolas; o que quer dizer a convivência com costumes opostos,
violando sua índole; o que é permanecer longe da família, não ter família; o
desprezo com que é tratado e o deboche de que é vitima com o pejorativo
tratamento de PARAIBA, termo que o Aurélio define como “operário da construção
civil, não qualificado”, mas que aqui é empregado genericamente como sinônimo
de nordestino, havendo, até, quem se dê ao requinte de proferir o redundante
“PARAIBA DE OBRA” – talvez para aguçar o ferrão discriminatório, ou por
ignorância, mesmo!
Já o Estado, como um todo, deveria
se empenhar no banimento da situação de miséria instalada naquela Região,
acarretada pela inadequada convivência com a seca e o despreparo de sua gente.
Nesse mister, como bem disse um poeta paraibano, o mal maior reside no fato de
que sempre se quis COMBATER a seca, quando o certo seria gerar condições de se
CONVIVER com ela. É tempo de se encarar com honestidade esse flagelo periódico
abolindo paliativos. Substituir a humilhação das frentes de trabalho e
distribuição insuficiente de cestas básicas, pois é sabido que essa prática
somente contribui para manutenção da famigerada e espúria “indústria da seca”.
Que seja aumentada a capacidade
de armazenamento de água com ampliação dos açudes existentes e construção de
novas unidades e, num plano menor, dos barreiros, cacimbas e cisternas, além da
perfuração de poços com adequação de projetos de irrigação. Que se consolide a
Reforma Agrária com adoção de incentivos e crédito sem burocracia para o
pequeno produtor rural. Que se enfrentem os problemas básicos de educação, com
implantação de escolas profissionalizantes. Que se dê ênfase à educação sexual,
com vistas aos benefícios profiláticos servindo de base ao planejamento
familiar – voltado à limitação de filhos por métodos compatíveis com o pensamento
da sociedade e da Igreja. Que se proporcione um mínimo de saneamento básico
para a prevenção e erradicação de doenças.
Para que, depois de tudo, dotado
do direito à vida, possa o nordestino exercer na plenitude o amor à terra em
que nasceu para livrar-se do embuste das tentações próprias do Sul Maravilha,
pondo fim à miserável procissão de retirantes que tanto mal dissemina. Lá e cá.
Rio
de Janeiro, 26 de outubro de 1992.
Marcos Cordeiro de Andrade
O autor, paraibano, presidente da
AAPPREVI, é filho do poeta Bastos Andrade e sobrinho do poeta Zé da Luz. já
falecidos.
Este artigo, apesar de escrito há
21 anos, mostra-se atual e oportuno. Foi elaborado para concorrer ao concurso
“Líderes do amanhã” do Jornal do Brasil, à época, sem, no entanto, ter sido
laureado (nem publicado).